Um pouco de história
As questões de gênero refletem o modo como diferentes povos, em diversos períodos
históricos, classificam as atividades de trabalho na esfera pública e privada, os atributos
pessoais e os encargos destinados a homens e a mulheres no campo da religião, da política,
do lazer, da educação, dos cuidados com saúde, da sexualidade etc.
O conceito de gênero, hoje em dia corrente nas páginas de jornal e nos textos que orientam
as políticas públicas, nasceu de um diálogo entre o movimento feministae suas teóricas e
as pesquisadoras de diversas disciplinas – história, sociologia, antropologia, ciência política,
demografia, entre outras.
Uma figura emblemática desse movimento de idéias é a
filósofa Simone de Beauvoir, que em 1949 escreveu o livro
O Segundo Sexo. Ele daria um novo impulso à reflexão sobre
as desigualdades entre homens e mulheres nas sociedades
modernas acerca do porquê do feminino e das mulheres
serem concebidos dentro de um sistema de relações de
poder que tendia a inferiorizá-los. É dela a famosa frase “não
se nasce mulher, torna-se mulher”. Com esta formulação,
ela buscava descartar qualquer determinação “natural” da
conduta feminina.
O movimento feminista não começou com esta escritora;
houve em diversos momentos históricos anteriores
iniciativas políticas de mulheres buscando alterar uma
posição subalterna na sociedade, a ponto de alguns
estudiosos considerarem a existência de múltiplos
movimentos feministas. Um desses exemplos são as chamadas sufragistas, que lutavam
no início do século passado para que as mulheres tivessem o mesmo direito de votar que
era concedido aos homens.
A luta pelo sufrágio feminino. Veja como a conquista do direito ao voto para as mulheres
variou muito entre as diferentes sociedades:
Ano de Conquista do Voto Feminino País
1917 URSS, com a Revolução.
1918 alemanha
1919 eUa
1928 Inglaterra
1932 Brasil
1945 França, itália, Japão
1973 Suíça
A crítica e a luta pela mudança dessa situação caracterizaram o movimento social das
mulheres, que apresenta diferentes vertentes, assim como o próprio conceito de gênero,
em evolução através de variadas abordagens, cada vez mais
sofisticadas.
O conceito de gênero, como vimos, foi elaborado para
evidenciar que o sexo anatômico não é o elemento definidor
das condutas da espécie humana. as culturas criam padrões
que estão associados a corpos que se distinguem por seu
aparato genital e que, através do contato sexual, podem gerar outros seres: isto é a reprodução
humana. Observe como se entrelaçam o sexo, a sexualidade – aqui a heterossexual – e o
gênero. Estas dimensões se cruzam, mas uma dimensão não decorre da outra! Ter um corpo
feminino não significa que a mulher deseje realizar-se como mãe. Corpos designados como
masculinos podem expressar gestos tidos como femininos em
determinado contexto social, e podem também ter contatos
sexuais com outros corpos sinalizando uma sexualidade que
contraria a expectativa dominante de que o “normal” é o
encontro sexual entre homem e mulher.
Desde 1964, o psiquiatra norte-americano Robert Stoller vem
desenvolvendo estudos sobre masculinidade, feminilidade
e a questão da identidade de gênero, criando um ponto de
partida para o estudo mais sistemático do travestismo. este
é um dos fenômenos da não-conformidade com as exigências
sociais de “coerência” entre o sexo anatômico, a indumentária
e o gestual supostamente referente ao sexo oposto. as travestis – pessoas cujo gênero e
identidade social são opostos ao do seu sexo biológico e que vivem cotidianamente como
pessoas do seu gênero de escolha – elaboram identidades que não devem ser entendidas
como “cópias de mulheres”, mas como uma forma alternativa de identidades de gênero.
entre as muitas autoras importantes para o desenvolvimento do conceito de gênero, destaca-se a antropóloga norte-americana Gayle Rubin, que em 1975
defendeu a idéia da existência de um sistema sexo-gênero em
todas as sociedades. Outra contribuição importante e muito
conhecida no Brasil é o texto Gênero: uma categoria útil de
análise histórica, de Joan Scott. Esta publicação contribuiu
para que pesquisadores da área de ciências humanas
reconhecessem a importância das relações sociais que se
estabelecem com base nas diferenças percebidas entre homens
e mulheres. Há também uma significativa produção científica
realizada por pesquisadoras francesas, dentre as quais se
destacam Christine delphy e danièle Kergoat, que elaboraram
o tema “divisão sexual do trabalho doméstico”. aprimeira
desenvolveu a teoria de que, em decorrência das relações de
gênero que naturalizam as atividades de cuidado, os homens
e os maridos exploram suas esposas e companheiras ao se
beneficiarem do trabalho doméstico gratuito. De fato, não
são apenas os homens próximos, mas a sociedade como um
todo que não reconhece ser o trabalho doméstico gerador
de riqueza, uma vez que a garantia de atendimento das
necessidades de alimentação, repouso e conforto possibilitam
a dedicação ao trabalho externo e à produção.